segunda-feira, 21 de junho de 2010

Morreu José Saramago

Tudo “pela hora da morte”
O nosso prémio Nobel da literatura morreu, no dia dezoito de Junho de 2010, aos 87 anos, em Lanzarote nas ilhas Canárias. As Letras portuguesas terão ficado mais pobres. As cerimónias fúnebres decorreram nos dias dezanove e vinte de Junho em Lisboa, tendo sido o seu corpo cremado, e assim, cumprida a sua vontade, manifestada em vida.
Parece-me, por outro lado, que ninguém terá respeitado a vontade do escritor, nestes dois dias de luto depois da sua morte. Um defensor da classe operária, da democracia e da igualdade não poderia pactuar com cerimónias fúnebres megalómanas, que atingem o excesso e o luxo, em oposição aos pobres “Baltazares” e “Blimundas” que, aos milhares, fazem parte do povo anónimo escravizado e alienado, a quem faz falta o pão para a boca que é esbanjado no enaltecimento e no culto da personalidade, como se quem tivesse morrido fosse um filho da burguesia capitalista, exploradora e reaccionária.
Assistimos, pelo contrário, àquilo que Saramago sempre criticou: a passarola voadora do regime, inexplicavelmente, vai resgatar o seu corpo como se tivesse morrido uma grande figura de Estado, um papa ou Jesus Cristo. O poder político ter-se-á apoderado e invadido os direitos privados da família e os seus sentimentos?
Na Câmara Municipal de Lisboa, qual convento improvisado, acorreu o povo numa enorme manifestação de auto de fé, cheia de rezas e ladainhas, com a presença das confrarias partidárias mais dedicadas, flores e bandeiras de todos os ofícios, irmandades de vários credos, o estandarte do “santo” na fachada a lembrar o suplício de uma vida de luta pelos mais fracos e oprimidos que, predestinadamente, foram vítimas do fanatismo e da crendice. Repetem-se as orações fúnebres, palavras embargadas, num gesto de catarse colectiva a implorar a purificação e a esconjurar os demónios da repressão.
Pelo meio desta massa imensa de gente anónima, os arautos da fé, os publicitários mais devotos interpelam os penitentes, recolhem opiniões e compilam depoimentos, procurando identificar os maiores pecadores e os condenados à fogueira da opinião pública dominante, principalmente, o condenado supremo, o chefe da confraria nacional por não anunciar pôr o seu pé na grande “procissão do corpo de deus” cujo incenso purificará os seus corpos neste espectáculo fervoroso de histeria colectiva.
Qual judeu condenado à fogueira, a multidão exulta e anseia pela justiça, proclamando um futuro de vitória sobre os exploradores do trabalho escravo, do povo trabalhador, outrora rude e violento, que foi espoliado, mas que suporta a vida de luxo, ostentação e luxúria do seu rei e de todo o seu séquito governamental.

sábado, 12 de junho de 2010

Caso PT/TVI II

Inquérito ao primeiro-ministro
A comissão de inquérito ao negócio PT/TVI concluiu que o chefe do governo mentiu, o que já muita gente, neste país, suspeitava. Se é verdade que um cidadão com tais responsabilidades é considerado mentiroso, que credibilidade podem ter todos os seus actos, no passado, no presente ou no futuro? Como acreditar nas suas decisões, nas suas promessas e nos seus resultados? Quem pode aceitar fazer sacrifícios com base na crença de que o futuro será melhor? Como pode um alegado mentiroso pedir sacrifícios ao povo? Se um chefe mente, como considerar os seus adjuntos no governo e no partido? Não foram eles que ao longo de todo este tempo o defenderam, o encobriram e o protegeram? Se todos os que foram chamados à comissão de inquérito pactuaram com a mentira e a corrupção que castigo lhes deve ser aplicado? A verdade e a mentira poderão continuar a coexistir? Como é possível?
Apurada a verdade dos factos que consequências haverá na cena política portuguesa? Não estamos perante um grave atentado contra o Estado de Direito quando o próprio governo, pela “calada da noite” interfere na liberdade e na independência da comunicação social e no regular funcionamento das instituições? Não estamos perante um caso mais grave do que o simples “lápis azul” do passado?
Como avaliar o papel das instituições judiciais, na sua mais alta instância, na análise das investigações e nas decisões sobre este caso? Que credibilidade pode ter o povo nos órgãos máximos da Justiça em Portugal?
Como podemos admitir que toda esta gente, todos estes cidadãos que ocupam lugares importantes de decisão, em empresas de vulto na economia portuguesa, quer públicas, quer privadas, em instituições e órgãos de soberania, sejam pagos a peso de ouro, com o dinheiro dos nossos impostos?
As comemorações de dez de Junho deveriam ter sido realizadas, não em Faro, mas um pouco mais ao lado, na terra do grande poeta popular, António Aleixo que lançou um forte repto aos políticos do seu tempo, mas que hoje se mantém actual, mais do que nunca:
“Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério!


Mas o poeta também afirmou, nesta quadra muito actual:


P'ra a mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.


Hoje, poderia acrescentar:


P'ra a mentira ser verdade
e, aparentemente segura,
tem que pôr a falsidade
ao abrigo da magistratura.